No “Cadernos de Literatura” deste domingo iremos embarcar numa viagem alucinante, em que sonhos e ilusões confundem-se numa coisa só. Através da “Barca” de “Calderón” atravessaremos as duas dimensões de Platão, unindo em um mesmo elo o “mundo das ideias” e o “mundo sensível”.
Segundo este filósofo grego, a realidade encontra-se em uma dicotomia, ou seja, existem as coisas que nós vemos e que, portanto, nos rodeia (mundo sensível), como também as coisas que não somos capazes de ver, mas que também existem, contudo, numa realidade abstrata ou espiritual. De acordo com Platão, as coisas que existem no mundo material não passam de uma cópia distorcida daquelas coisas que existem no mundo supranatural. É daí que se origina o “mito das cavernas”, em que Platão nos convida a “sair das sombras” e descobrir a “verdade”, que só poderia ser alcançada mediante o uso da “razão”.
Na peça “A Vida É Sonho”, o dramaturgo espanhol Calderón de la Barca desvirtua os dois mundos e provoca uma ruptura no seio da “razão”. A narrativa é centrada no jovem príncipe Segismundo, que antes de nascer foi amaldiçoado por uma profecia, segundo a qual quando o príncipe crescesse destruiria todo o reino. Imediatamente, assustado com a possibilidade da profecia se concretizar, seu pai, o rei Basílio, ordena que uma torre seja construída em um lugar afastado palácio, e que nessa torre seja aprisionado o príncipe, que a partir de então passa aos cuidados de Clotaldo, o melhor amigo do rei.
Com o tempo, o rei começa a ter remorsos pelo que fez com o próprio filho e resolve tirá-lo da torre, contudo, para que ele não saiba o que aconteceu, Clotaldo sugere que seja colocado um narcótico em sua bebida, assim após ele adormecer, seria levado ao palácio e convencido de que a vida que teve na torre na verdade foi um terrível pesadelo que o acometeu desde criança. Atordoado com toda essa história, Segismundo acaba cedendo à pressão e se convence que de fato sempre foi um príncipe e de que a vida na torre não passou de um sonho ruim. Ocorre que, como já era de esperar – talvez, não pela profecia, mas pela criação traumática que teve – Segismundo acaba assassinando uma pessoa.
Diante deste fato, o rei mais uma vez fica assustado e chega à conclusão de que o filho deve ser novamente colocado na torre. Para tanto, mais vez ele é drogado e quando ele acorda, já na torre, Clotaldo o convence de que sonhada foi a vida na corte. Confuso, Segismundo já não consegue distinguir o que é real e fictício e começa a lamentar sua situação, produzindo os seguintes versos:
É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
Vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
A história de Segismundo nos coloca diante dos simulacros da existência. Até que ponto estamos diante da realidade? Como descobrir se estamos vendo as sombras dos objetos no fundo da caverna ou de fato comtemplando a essência das coisas? Ora, num mundo dominado por “mitos” e “ficções”, é difícil discernir o real do irreal. A própria “razão” é em si uma forma de obscurecer a “verdade”. E o que dizer da “verdade”? Não seria ela também uma grande invenção? E todas as outras “fabulações” que engenhosamente são criadas e nós acreditamos sem qualquer resistência? A todo momento e em cada parte, estamos sendo tomados como reféns das “ideologias” ao nosso redor, e a maior delas talvez seja a “liberdade”. Já dizia Jean-Paul Sartre: “o homem está condenado a ser livre”; livre num mundo de ilusões alheias.
Por isso, “temos que reconquistar a possibilidade de ser o autor inaugural das ilusões que sustentam nossos sentidos e desejos”, isto é, adquirir autotomia que, em última instância, em ser mais profundo, é “a possibilidade de construir por si as ilusões próprias, aquelas que nos permitem atribuir a nossos sonhos, desejos e sentidos o estatuto de realidade”. Foi isso que Luiz Alberto Warat sussurrou em nossos ouvidos e que Julio Cortázar identificou como a alma dos Cronópios.
EMBLEMA
Após ler esse texto, o que você diria sobre a realidade? Que tipo de ilusões você tem vivido? Todos que comentarem receberão o emblema abaixo. Até a próxima edição.

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